segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Éden

Quando uma página em branco ocupa toda tua mente e teus sentimentos resumem-se à singularidade do vácuo. O grafite em
tuas mãos é ineficaz, frágil, débil, e sua vulnerabilidade torna-se ainda mais evidente perante a aquarela dos verdadeiros pintores. Artistas contemporâneos, pintores de opiniões absolutas, alimentam-se da vacância da alma, ordinários, impressionistas, pintam, respingam, rabiscam atônitos e completamente ausentes de empatia. Abusam do vermelho e dificilmente assumem sua preferência. O preto fica para o final, reservam-no enquanto o saguão ainda permanece
lotado; a festa parece interessante demais para seu encerramento repentino e os convidados aguardam ansiosamente pelo banquete. És a principal atração, colocam-te em evidência e o espetáculo parece não ter fim. Sua pele queima em contato com a tinta, uma dor angustiante te sufoca, tuas mãos não reagem. Não pode largar o lápis.
Depois vem o som.

Gargalham. Comemoram. Brindam. Festejam. Assinam. Pronto. Tomam domínio. Sorrateiramente, tu começa a apontar. Sequer dão-se ao trabalho de analisar a finalização do próprio feitio. Malfeitores. Teu corpo descama, arde, padece aos poucos.

Depois, o silêncio.

A fadiga vem à tona e torna-se evidente a insaciação dos desejos. E tu continua a apontar, impactando-os. A passividade foi rompida! Tornam-se inseguros. Aterrorizados por dentro. Ridicularizam-te. Não percebem que a obra já
está pronta, já não há mais tinta nas palavras.
Agora é a sua vez. Aproxima a superfície, agora pontiaguda, do grafite em algum espaço teu para rascunho e permanece imóvel. A apreensão invade seus determinados corpos, embora
tentem omiti-la. Desliza o grafite para o lado e o traço por ti marcado mal é visto. Aliviam-se e retomam o ritual de festividade.

Enfim, tua natureza torna-se explícita.

Repete o movimento com maior rigidez e intensidade. Perfura teu manto corporal com a extremidade aguda do grafite e mostra a verdadeira coloração do teu potencial.
Banha teu corpo de sangue e prova que teu vermelho é mais vivo, mais intenso, denso, agressivo, superior ao carbono utilizado. Aproveitas o palco e demonstras que teu destino é inteiramente teu. Tua própria matéria prima é capaz de sobrepor-se a qualquer
borrão alheio; teu corpo também é inteiramente teu e de mais ninguém. Tua amadora arte macabra assusta e o desespero toma conta do saguão.
Não há tempo para hesitar, prova que crueldade e moralidade podem possuir o mesmo valor semântico e coexistir no mesmo contexto.
Agora.

Eu, habitante do reino das trevas, imperador do submundo, Deus dos abissais, ajudarei-te a exterminar tal raça que tamanha mediocridade e audácia têm incomodado inclusive minha existência. Alia-se a mim e as luzes calar-se-ão, tornando o ambiente mais propício e embelezado para tua dança. Tira o sorriso do rosto e começa o espetáculo. O jogo inverteu-se.
Ergue teu perfurador e certifique-se de que ao final da valsa o único som emitido será o da tua respiração ofegante. Corta, rasga, dilacera, um por um.
Não te dispersa pelos gritos de desespero que fatalmente ecoarão. Cordeiros em pele de leão, covardes, tentarão escapar do trágico destino a todo custo. Silencia-os. Por toda a eternidade.

Quanto a ti, pouparei tua vida. Chamarei-te de Adão, semeador da nova raça, batizado com sangue, teu árduo trabalho apenas começou.
Deus tenha piedade de vós.

sábado, 3 de julho de 2010

Aquarela Monocromática


Lembro-me do desespero de minha mãe ao ser tocado por suas mãos gélidas e pálidas, transmitindo a agonia do sufocamento para o meu corpo que todo se arrepiou. Sua força era sobrenatural e me arrastou por toda a casa procurando saídas para o inevitável, exalando aquele odor fétido de pavor que seu corpo produzira em resposta aos estímulos do ambiente. Ouvimos um estrondo no andar de cima e enquanto minha mãe agradecia por termos deixado o segundo piso depressa, eu sentia o cheiro de todos os meus livros serem carbonizados e chorava por dentro em luto por toda companhia que sustentava meus dias cinzentos em 12 anos de existência. Eu conseguia imaginar o cemitério de vidas perdidas que se transformou a minha velha estante. Todos aqueles seres, inquilinos de páginas, que me ensinaram um pouco mais sobre o comportamento estranho das entidades que diariamente me rodeavam, queimavam em silêncio, passivos, indiferentes.

A partir daquele momento eu decidi que ficaria e salvaria o resto das almas que habitavam meu quarto em chamas. Não poderia deixar a abiose dos meus livros encapados torná-los tão inconsequentes. Onde estaria o velho Farrence de "Lembranças Contidas" para salvar sua família do desastre que habitava o cômodo? Como se salvaria Alice de seu país das maravilhas possuído pelo demônio em forma de calor? Deus me deu inteligência para salvar vidas que valham a pena, que façam bem à humanidade do mesmo modo que fizeram à mim, não para crescer, desenvolver meu sentimento de frieza, me alistar ao exército e bombardear casas alheias.

Balancei a cabeça e tentei desenlaçar meu braço das mãos de minha mãe em uma tentativa fálil, e esta, deparou-se com a surpresa de minha atitude, virando-se para entender minha reação.

-Não, agora não Ravid. - Ela gritou com a voz mais intolerante e seca que eu já ouvira enquanto uma explosão acima de nós fez com que pedaços de madeira, terra, concreto e poeira rolassem escada abaixo e atingissem nosso patamar. - Eu sei que está com medo, mas procure ajudar a sua mãe, só isso!
-Me deixa, me solta, me larga! - Eu gritava enquanto tentava me livrar daquelas mãos já suadas, quentes e pegajosas, embora soubesse que ela nunca compreenderia meu desespero que agora se sobrepusera o dela. Nunca entendeu uma palavra minha sequer por todo o meu acordar, e já acostumado também com esta reação dela, utilizei toda a minha força de homem contra a dela, obtendo sucesso. Pronunciei friamente as palavras que justificavam todo meu incômodo – Eu vou ficar. Preciso salvar vidas que correm perigo. Nós temos pernas, mente, podemos andar e pensar, eles também as possuem mas não podem se safar!

Ela pareceu ignorar completamente minha fala, não que isto fosse surpresa ou novidade para mim, mas algo a fascinou tanto que fora incapaz de ouvir minhas valiosas explicações. Eu tentei focalizar o que ela estava observando, e me surpreendi ao descobrir que era uma porta. Uma porta. Madeira manchada velha e envernizada que cheirava a óleo de cozinha doce. Era a porta dos fundos. Uma feição de apreensão de repente tomou conta de seu rosto, e ao retornar seus olhares para minha revolta, fixou sua pupila nas minhas até entrarem em sintonia.

-Escute bem a sua mãe: seu pai está nos esperando lá fora, não temos tempo para isso agora, devemos sair daqui o mais rápido possível, tudo bem querido? - Fiquei feliz por ela ter me ouvido mas não me manifestei, apenas tossi devido ao acúmulo de carbono. -Seus amigos vão ficar bem, podemos comprá-los todos de volta depois, tudo bem? Agora vamos ao encontro de seu pai.

E após vomitar palavras porcas, insistiu em me arrastar para fora e deixar que todos aqueles que me acolheram, quando ninguém o fez, queimassem. Me decepcionei ao confirmar que ela era como todos aqueles soldados loiros, mesmo sem portar objetos barulhentos que atirassem fogo; sua falta de empatia, sensibilidade e compaixão a tornava extremamente semelhante a eles, contrastando apenas com a cor do cabelo. E então, infestado de raiva, eu só consegui repetir o que já tinha dito antes. Eu. Vou. Ficar.

Percebi que sua feição mudou lentamente enquanto ela me observava, e seu olhar tornou-se doce e acolhedor. Ela então me puxou com toda sua força, ajoelhando-se, e eu, que não tive tempo para me defender, fui recebido por seus seios com um abraço tão confortante que nesse exato momento pude descobrir o significado da palavra carinho. Equivocado estava eu ao achar que ela não me conhecia, a mulher que eu estava abraçado me compreendia tanto que sabia que eu não ia desistir de subir até o segundo andar, mesmo com a escada parcialmente interditada por resquícios dos cômodos, e fazer o possível para salvar um livro sequer. O ar puro do ambiente já não existia, e uma nuvem de fumaça cinzenta nos envolvia. Conformada, aproximou seus lábios ressecados do meu ouvido e me apertou com toda força que lhe restara.

-Tudo bem – Sussurrou e afastou seu corpo lentamente do meu. - Eu vou. Agora saia já de casa e diga pro seu pai não me esperar se eu demorar.

Ainda em choque, fui empurrado em direção a porta que agora estava a dois metros do meu alcance e só consegui agradecê-la ao olhar para trás. Minha mãe, já debruçada sobre a escada, fez um gesto para que eu abandonasse depressa o lugar, e eu com toda a minha gratidão, a respeitei. Ao atravessar a porta de casa, senti meu pulmão refrescar-se deparando-me com a troca de ares, como se meus alvéolos estivessem repletos de gás mentol. Já o ambiente externo, soava mais infernal ainda; o céu era cinzento e se assemelhava ao ambiente anterior, as ruas eram habitadas por multidões e o gemido dos objetos carbonizados foram substituídos por gemidos de judeus desabitados, feridos, mutilados, desesperados.

Uma sensação de mal estar cresceu gradativamente e assumiu todo meu corpo, era como afogar-se em um oceano onde a terra já não podia ser mais avistada. Enquanto meus batimentos cardíacos aceleravam, meus membros inferiores e superiores tremiam e me manter de pé já exigia um enorme esforço. Meus olhos fixaram-se em uma cadela que, assim como eu, tinha dificuldades para se manter de pé, e seu lindo pêlo branco fora borrado de vermelho pelos alemães. Cambaleei em sua direção para ampará-la, mas algo me impediu de dar o quinto passo ao agarrar minha cintura. Meus braços largaram-se à inércia e eu pude reconhecer o rosto do homem que conteve meus passos. Era meu pai. E estava acompanhado por um dos soldados loiros.

-Onde está sua mãe? - Seus cabelos pretos estavam oleosos e seu longo rosto estava pálido e cadavérico. Seus braços envolviam meu corpo como um escudo e o nervosismo não o deixava tirar os olhos do ariano. Após se acostumar com o calor do meu corpo, notou que algo estava errado. - Por Deus... Você está tremendo.

-Mamãe foi salvar o velho Farrence e sua família. - Respondi ignorando sua preocupação. Papai pareceu não ter entendido o que eu disse, e resolveu explicar-se para o soldado dizendo palavras que notoriamente doíam-lhe o coração toda vez que necessitava pronunciá-las.

-Peço perdão... O garoto é autista. - Ele tentou me esconder entre suas vestes rasgadas enquanto o alemão sacava seu objeto de matança decidido a usá-lo. Sua camisa fez com que eu deixasse de enxergar o mundo afora e minha cabeça fosse completamente coberta por ela. Sentia o suor de sua barriga umedecer minha nuca, e por mais que eu tentasse me livrar de sua vestimenta, suas mãos pesavam sobre meus olhos reforçando mais ainda sua vontade de não me deixar enxergar um feixe de luz sequer. - Por favor, ele não tem culpa disto, pelo amor de Deus...

Fui arremessado à calçada junto do corpo do meu pai, seguido de um barulho ensurdecedor. Os gritos judaicos aumentaram, e eu tinha dificuldades para voltar a enxergar novamente, aquela paisagem negra me agoniava cada vez mais. Quando finalmente o cinza, o branco e o marrom voltaram a fazer parte de minha visão, eu pude avistar meu pai recuperar a consciência e o soldado, que pela coloração dominante mais lembrava um comunista, encontrava-se caído no chão com um longo artefato de madeira, bem familiar, atravessando seu abdômen em dez centímetros de raio. Pude notar que aquele artefato foi arremessado da minha casa através de uma explosão, cujas chamas agora engoliam toda a residência.

Levantei e me aproximei do soldado percebendo que algo havia sido arremessado junto da madeira, e lá estava ele, o velho Farrence, repousando sobre as ruas alemãs, muito bem encapado e com a primeira página rasgada no canto direito. Ajoelhei, peguei o exemplar de "Lembranças Contidas" e não pude conter uma lágrima que deslizou pelo meu rosto empoeirado. Voltando a posição original, pressionei o livro carinhosamente contra o meu peito, fechei os olhos e senti que os batimentos cardíacos regularizaram, e meu corpo todo voltava ao normal também gradativamente.

-Obrigado, velho Farr. Prometo um dia entender todos eles. – Abri os olhos e avistei a janela do meu quarto que ardia em chamas. - Obrigado, mamãe.